Prologo
Em África os filhos são uma benção. Realizam a lenda da
eternidade.
Perpetua os ancestrais. Eu não sou propriamente isso
E meus ancestrais estão no limite, meio - branco, meio -
alcatrão. Mas em África não existem Deuses meio - brancos, meio – alcatrão. Só
Deuses. E para sê – lo, há a que ser - se de alcatrão.
Os da cor da alcatrão como eu chamam branca, ou quase branca
e os brancos, como recordar me da cor da minha pele chamam me preta. Dizem que
eu tinha a pele de chocolate, eu nunca sobe ao certo o que isso significava,
pelo menos ao dia em que ele chegou todo misterioso no campo onde a minha mãe
trabalhava feita uma escrava - e ainda dizem que a escravatura já tinha sido
abolida.
Pediu me que fechasse os olhos. Cheguei a pensar que fosse
roubar me beijo, confesso. Depois me pediu que abrisse a boca. Obedeci meio
hesitante. Colocou uma pedrinha mole na boca e pediu me que mastigasse. Erra
algo estranho meio doce, meio amargo, mais para o doce do que para o amargo.
Aquilo erra chocolate. Doce como eu, disse me. Acabara de
chegar da Lusitânia e ele roubou um pedaço para explicar como eu lhe parecia.
Minha mãe erra negra, um pouquinho mais negra do que eu, mas nem por isso menos
linda. Perto da sua morte tinha a pele curtida e o corpo tatuado de chicote.
Não si lhe reconhecia mais a bela mulher que fora algo dia.
O meu pai… o meu pai, esse não se parecia com ninguém. Dizem
ser português. Odeio esse homem e amaldiçoo o dia em que pois os olhos sobre a
minha mãe.
Assim sou eu quase impossível, a combinação da fera e da bela
do vilão e da heroína que é a minha mãe, criada entre plantações de arrozais, brincado
a caca aos passarinhos com filho de capataz branco que por actos foi algoz que
lhe roubou a alma. Sempre ouvi o padre dizer que éramos todos filhos de Deus,
preto e branco
E eu, que não sou de alcatrão – embora não acredite filha de
uma negra violentada nos arrozais por um
soldado português embriagado e mal cheiroso, o que seria? Quando nasci,
bradando a plenos pulmões no meio da plantação, as mamanas que assistiram a
minha mãe no parto seguraram me com desdém, viraram me o rosto e saíram uma
depôs da outra murmurando que eu não me parecia com ninguém da família. Era uma
aberração.
Só capataz viúvo permaneceu ali com os olhos a jorarem – lhe
lágrimas , naquele dia fui condenada sem direito a julgamento nem apelo. A
sentença foi cruel: se todos somos filhos de Deus, eu sou filha de um Deus
menor
LISBOA 1980
Com uma mão a frente e a outra atrás. Foi quase assim que a
Madalena chegou a Lisboa corria o verão de 1980. Madalena inspirou
demoradamente, fechou os olhos e abriu os braços em jeito de quem espera um
abraço, ou ensaia um voo, parecia um retorno a um lugar que amava bastante. A
uma pequena distância o Tejo desembocava no oceano em Lisboa não se parecia em
nada com o antigo Lourenço Marques, salvo o facto de conviver ambos com o mar.
Setúbal tinha de ser Catembe, pensou. Não lhe parecia justo. Catembe era
melhor.
Uma freira baixa e redonda saltitava entre as pessoas
tentando avistar alguém que lhe lembrasse Maria Madalena. Depois deu - se conta
de que a Madalena que buscava era outra, vinda de Moçambique. Era quase uma
negrinha, da cor de chocolate, a freira o sabia ela, baixa e gorda, lançou um
rápido olhar de cabo a rabo analisando com detalhe a moca. Depois deu por si arrependida
por pensar em tão grande disparate.
A freira puxou Madalena pelo braço e desapareceram por entre
a multidão dos chegados e dos que partiram. Tinha algum fraco por Moçambique e
lembrava se particularmente de uma concubina preta que fizera por lá numa
memorável viajem antes da independência. Tinha de manter a imagem de bom pai de
família, levar avante um casamento de mais de vinte anos.
Alem do mais, a esposa, que andava desconfiada, ameaçara
suicidar caso ele a trocasse com uma negrinha. O homem lembrou se de estar em
Lisboa, a incontáveis milhas de Moçambique, porque havia algo naquele corpo de
chocolate berrando à Maria Madalena ou pelo menos a obscuridade que envolvia
aquela figura bíblica.
Enquanto se dirigiam ao convento a irmã baixa e redonda
sofria com antecipação as dores de Madalena. A mestra de noviças detestava
mulheres bonitas. O que importa é beleza interior, lembrai – vos que sois
noivas de Cristo. E Cristo mora no vosso coração. Ѐ do coração que precisais cuidar – lembrava -
se de ouvir a mestra de noviças repetir piamente as suas discípulas. Uma
pergunta depois da outra foi bisbilhotando a vida da pobre moça até se
aperceber que não era uma noviça. Começava a simpatizar com ela, Madalena
chegou ao convento e teve a impressão de que superiora a olhava com um olhos
familiares, esse nome era uma maldição, ela o sabia. Pelo facto de não ser
branca sendo filha de branco, mas principalmente pelo facto de não ser negra
sendo filha de uma negra que passou a vida inteira quase uma escrava numa
plantação de arroz da Manhiça. Pela primeira vez deitou a cabeça sobre o
travesseiro com alguma tranquilidade. Ela era como uma pluma, impelida a voar,
para onde os ventos do futuro a levassem. O futuro a Deus pertence. Pouco
depois, Madalena adormeceu vencida pelo cansaço das noites mal dormidas pelos
mares.
A OLVEIRA
Madalena acordou com ao som sexta badalada. Espreitou a torre
pela janela do seu quarto que imitava um claustro. O sol da Europa era estranho.
Nada que lembrasse o sol tropical dos arrozais da Manhiça. Madalena vestiu se e
seguiu em direcção a capela e sentou no último banco ao lado da irmã
bisbilhoteira, baixa e gorda, que bocejava como que não dormira na noite
anterior. Madalena levantou a cabeça e procurou o padre com olhar. Era um
senhor velho, branco, os poucos cabelos que lhe restavam na cabeça calva pediam
em direcção a terra. O rosto ganho por rugas. Devia ter sido feliz no seu
ministério, não era ruga de dor, como as que habitualmente tatuavam os rostos e
as mãos dos trabalhadores dos arrozais, aquelas rugas eram marcas do tempo
sulcos serenos sacrossantos.
A irmã baixa e gorda olhou para Madalena perguntando - se o
que se passava naquela cabecinha. Depois inclinou - se ligeramente e falou -
lhe ao pé do ouvido.
Ø Dizem que é caduco.
Ø Quem?
Ø O padre. Só as irmãs suportam as
missas dele, por isso vem para cá todos os dias para celebrar a missa.
Madalena assentiu com a cabeça e tornou a olhar para o padre.
Ø Ele é surdo, sabia? – continuou a
irmã.
Ø Coitado.
Coitadas de nos que temos de ouvir as missas dele. Queria eu
ser surda também. – a irmã fez o sinal da cruz, como que a desculpar se pelo
disparate que acabava de dizer. Madalena pensou que devesse usá-la mais para
cantar salmo do que para dizer asneiras.
No final da missa as noviças e as freiras retiram. - Irmã
Dolores, você fica - ordenou a madre superiora.
- Vi o seu comportamento durante a missa, irmã Dolores. E
reprovável.
- Pensei que estivesse rezando, madre.
- E estive. Mas tive de zelar pela santidade dos seus actos,
já que não posso perscrutar os seus pensamentos.
- Porque a senhora não me disse isso antes.
- Porque você nunca perguntou. E … o silêncio e um estado da
mente. – Irmã Dolores apontava a sua cabeça de bebe rechonchudo ou urso polar,
não se sabe ao certo, enquanto pisava firme no chão rumo ao quarto como se se
tivesse convertido em outra pessoa. Madalena expirou. O silêncio e um estado da
mente.
Quando a lua se apaga
A notícia do assassinato do soldado Bebeto sobrevoou o
povoado como se espalhada pelo vendaval que fustigou o arrozal naquela noite,
por lá o soldado era a lei, e a mulher apenas escrava da lei. A via de terra
batida atravessava o povoado simetricamente indo desembocar nas plantações. Os
seus bisavôs se haviam mudado para a colónia logo após o casamento.
O mais noto deles, Eduardo, que era o patriarca da família
era uma espécie de administrador da Manhiça. Tinha um pendor para os negócios e
mas do que administrar Manhiça cuidava dos negócios da família, Arrozais e
gado. Mas as regras ditavam que o administrador fosse também juiz. O julgamento
da Maria foi breve, quinze minutos fugazes que regeriam o resto da vida dela.
Eduarda Marques auscultou a opinião dos soldados, deliberou consigo mesmo e
proferiu a sentença. Sob o olhar vidrado dos trabalhadores do campo, Maria
chegou a arrozais escoltada por dois soldados e foi entregue ao seu algoz. Devia
ter menos de trinta anos.
A moça trajava ainda as vestes em frangalhos desde a noite
anterior. O sol tropical incidia forte. Maria mergulhou o pé na lama e as mãos
no trabalho. Inclinou-se. As vestes pareciam não conter o seu corpo. Tinha a parte
do seio direito a mostra e o vestido retalhado expondo suas pernas pinceladas a
melanina. Se o capataz não se cansa, ninguém descança. Todos conheciam a regras.
Ele fazia as próprias leis, melhor, o capataz era a lei, os arrozais eram uma
colónia monárquica no meio da grande colónia que era Moçambique.
Maria chegou a casa com o crepúsculo. Era uma casa de
mulheres. Ela, a mãe, a avo. Após a trajédia do primeiro casamento, a mãe se
havia decidido por uma via de solteira. Diziam por ser casa de mulheres fáceis.
Aonde já se viu uma casa sem homem.
A verdade e que a mãe
de Maria bem que tentara. Era quase uma venda da qual o pai passou o resto da
vida se desculpando. Fora dada em casamento a Jesefa, um brutalmente que gastou
a vida entre copos de Xindere. Os estábulos ficaram vazios da noite para o dia,
não havia mais leite negado para trabalhar a terra, ele bebia sem parar e
descarregava frustração na família. Chutes e palavrões que ficaram tatuados no
corpo e na alma, como se não lhe bastasse a truculência, Josefa procurou uma
segunda esposa, quando o avo da Maria reclamou a respeito dos maus tratos a
filha o genro jogou lhe na cara a lista dos favores que este lhe devia e não
eram poucos. Foi dai que o velho trabalhou feito doido nas plantações dos
Marques para reembolsar até ao último centavo que devia ao genro.
Josefa afundou que ele mesmo abriu, o xindere subiu lhe a
cabeça e ameaçava deixar lhe louco. Numa amanha foi encontrado morto debaixo de
uma frondosa mafureira diante da sua cabana principal, nem chegou a velhice,
ninguém lhe contou os cabelos brancos, sinal de benção e sageza.
Maria tornou se filha
da mãe, da avo e do avo, trabalhou até cair inanimado numa tarde, passavam já
cinco anos era 1958.
Cruzava o caminho de um algoz cujo pai assistira sereno a
morte do avo, os quase escravos geravam quase escravos, ferrozes capatazes
brancos ensinavam aos filhos a arte de torturar aos negros, e os Marques
geravam puros Marques. Até andavam rumores incestos, para manter os Marqueses
dos Marques puros de sangue.
- Minha filha, o que foi que fizeram contigo.
- A historia repete se, mãe.
- Não, não contigo. Roubaram me o pai e não vou deixar que
agora me roube a te.
- O que vai a fazer, mãe?
- Eu vou lá e falo com o administrador. Os Marques têm de
escutar me, eu fico no teu lugar.
- Não, mãe. A senhora não vai. Olhe para as tuas mãos. A
senhora foi feita para fazer cestos e vassouras e peneiras e chapéus. A senhora
nem sequer fala português. – Maria soluçava.
- Eu tenho orgulho de te minha filha. Homem nenhum estragara
a nossa vida. Nenhum. – Mãe e filha trocaram confidências a luz apagada do
luar.
Prologo
Em África os filhos são uma benção. Realizam a lenda da
eternidade.
Perpetua os ancestrais. Eu não sou propriamente isso
E meus ancestrais estão no limite, meio - branco, meio -
alcatrão. Mas em África não existem Deuses meio - brancos, meio – alcatrão. Só
Deuses. E para sê – lo, há a que ser - se de alcatrão.
Os da cor da alcatrão como eu chamam branca, ou quase branca
e os brancos, como recordar me da cor da minha pele chamam me preta. Dizem que
eu tinha a pele de chocolate, eu nunca sobe ao certo o que isso significava,
pelo menos ao dia em que ele chegou todo misterioso no campo onde a minha mãe
trabalhava feita uma escrava - e ainda dizem que a escravatura já tinha sido
abolida.
Pediu me que fechasse os olhos. Cheguei a pensar que fosse
roubar me beijo, confesso. Depois me pediu que abrisse a boca. Obedeci meio
hesitante. Colocou uma pedrinha mole na boca e pediu me que mastigasse. Erra
algo estranho meio doce, meio amargo, mais para o doce do que para o amargo.
Aquilo erra chocolate. Doce como eu, disse me. Acabara de
chegar da Lusitânia e ele roubou um pedaço para explicar como eu lhe parecia.
Minha mãe erra negra, um pouquinho mais negra do que eu, mas nem por isso menos
linda. Perto da sua morte tinha a pele curtida e o corpo tatuado de chicote.
Não si lhe reconhecia mais a bela mulher que fora algo dia.
O meu pai… o meu pai, esse não se parecia com ninguém. Dizem
ser português. Odeio esse homem e amaldiçoo o dia em que pois os olhos sobre a
minha mãe.
Assim sou eu quase impossível, a combinação da fera e da bela
do vilão e da heroína que é a minha mãe, criada entre plantações de arrozais, brincado
a caca aos passarinhos com filho de capataz branco que por actos foi algoz que
lhe roubou a alma. Sempre ouvi o padre dizer que éramos todos filhos de Deus,
preto e branco
E eu, que não sou de alcatrão – embora não acredite filha de
uma negra violentada nos arrozais por um
soldado português embriagado e mal cheiroso, o que seria? Quando nasci,
bradando a plenos pulmões no meio da plantação, as mamanas que assistiram a
minha mãe no parto seguraram me com desdém, viraram me o rosto e saíram uma
depôs da outra murmurando que eu não me parecia com ninguém da família. Era uma
aberração.
Só capataz viúvo permaneceu ali com os olhos a jorarem – lhe
lágrimas , naquele dia fui condenada sem direito a julgamento nem apelo. A
sentença foi cruel: se todos somos filhos de Deus, eu sou filha de um Deus
menor
LISBOA 1980
Com uma mão a frente e a outra atrás. Foi quase assim que a
Madalena chegou a Lisboa corria o verão de 1980. Madalena inspirou
demoradamente, fechou os olhos e abriu os braços em jeito de quem espera um
abraço, ou ensaia um voo, parecia um retorno a um lugar que amava bastante. A
uma pequena distância o Tejo desembocava no oceano em Lisboa não se parecia em
nada com o antigo Lourenço Marques, salvo o facto de conviver ambos com o mar.
Setúbal tinha de ser Catembe, pensou. Não lhe parecia justo. Catembe era
melhor.
Uma freira baixa e redonda saltitava entre as pessoas
tentando avistar alguém que lhe lembrasse Maria Madalena. Depois deu - se conta
de que a Madalena que buscava era outra, vinda de Moçambique. Era quase uma
negrinha, da cor de chocolate, a freira o sabia ela, baixa e gorda, lançou um
rápido olhar de cabo a rabo analisando com detalhe a moca. Depois deu por si arrependida
por pensar em tão grande disparate.
A freira puxou Madalena pelo braço e desapareceram por entre
a multidão dos chegados e dos que partiram. Tinha algum fraco por Moçambique e
lembrava se particularmente de uma concubina preta que fizera por lá numa
memorável viajem antes da independência. Tinha de manter a imagem de bom pai de
família, levar avante um casamento de mais de vinte anos.
Alem do mais, a esposa, que andava desconfiada, ameaçara
suicidar caso ele a trocasse com uma negrinha. O homem lembrou se de estar em
Lisboa, a incontáveis milhas de Moçambique, porque havia algo naquele corpo de
chocolate berrando à Maria Madalena ou pelo menos a obscuridade que envolvia
aquela figura bíblica.
Enquanto se dirigiam ao convento a irmã baixa e redonda
sofria com antecipação as dores de Madalena. A mestra de noviças detestava
mulheres bonitas. O que importa é beleza interior, lembrai – vos que sois
noivas de Cristo. E Cristo mora no vosso coração. Ѐ do coração que precisais cuidar – lembrava -
se de ouvir a mestra de noviças repetir piamente as suas discípulas. Uma
pergunta depois da outra foi bisbilhotando a vida da pobre moça até se
aperceber que não era uma noviça. Começava a simpatizar com ela, Madalena
chegou ao convento e teve a impressão de que superiora a olhava com um olhos
familiares, esse nome era uma maldição, ela o sabia. Pelo facto de não ser
branca sendo filha de branco, mas principalmente pelo facto de não ser negra
sendo filha de uma negra que passou a vida inteira quase uma escrava numa
plantação de arroz da Manhiça. Pela primeira vez deitou a cabeça sobre o
travesseiro com alguma tranquilidade. Ela era como uma pluma, impelida a voar,
para onde os ventos do futuro a levassem. O futuro a Deus pertence. Pouco
depois, Madalena adormeceu vencida pelo cansaço das noites mal dormidas pelos
mares.
A OLVEIRA
Madalena acordou com ao som sexta badalada. Espreitou a torre
pela janela do seu quarto que imitava um claustro. O sol da Europa era estranho.
Nada que lembrasse o sol tropical dos arrozais da Manhiça. Madalena vestiu se e
seguiu em direcção a capela e sentou no último banco ao lado da irmã
bisbilhoteira, baixa e gorda, que bocejava como que não dormira na noite
anterior. Madalena levantou a cabeça e procurou o padre com olhar. Era um
senhor velho, branco, os poucos cabelos que lhe restavam na cabeça calva pediam
em direcção a terra. O rosto ganho por rugas. Devia ter sido feliz no seu
ministério, não era ruga de dor, como as que habitualmente tatuavam os rostos e
as mãos dos trabalhadores dos arrozais, aquelas rugas eram marcas do tempo
sulcos serenos sacrossantos.
A irmã baixa e gorda olhou para Madalena perguntando - se o
que se passava naquela cabecinha. Depois inclinou - se ligeramente e falou -
lhe ao pé do ouvido.
Ø Dizem que é caduco.
Ø Quem?
Ø O padre. Só as irmãs suportam as
missas dele, por isso vem para cá todos os dias para celebrar a missa.
Madalena assentiu com a cabeça e tornou a olhar para o padre.
Ø Ele é surdo, sabia? – continuou a
irmã.
Ø Coitado.
Coitadas de nos que temos de ouvir as missas dele. Queria eu
ser surda também. – a irmã fez o sinal da cruz, como que a desculpar se pelo
disparate que acabava de dizer. Madalena pensou que devesse usá-la mais para
cantar salmo do que para dizer asneiras.
No final da missa as noviças e as freiras retiram. - Irmã
Dolores, você fica - ordenou a madre superiora.
- Vi o seu comportamento durante a missa, irmã Dolores. E
reprovável.
- Pensei que estivesse rezando, madre.
- E estive. Mas tive de zelar pela santidade dos seus actos,
já que não posso perscrutar os seus pensamentos.
- Porque a senhora não me disse isso antes.
- Porque você nunca perguntou. E … o silêncio e um estado da
mente. – Irmã Dolores apontava a sua cabeça de bebe rechonchudo ou urso polar,
não se sabe ao certo, enquanto pisava firme no chão rumo ao quarto como se se
tivesse convertido em outra pessoa. Madalena expirou. O silêncio e um estado da
mente.
Quando a lua se apaga
A notícia do assassinato do soldado Bebeto sobrevoou o
povoado como se espalhada pelo vendaval que fustigou o arrozal naquela noite,
por lá o soldado era a lei, e a mulher apenas escrava da lei. A via de terra
batida atravessava o povoado simetricamente indo desembocar nas plantações. Os
seus bisavôs se haviam mudado para a colónia logo após o casamento.
O mais noto deles, Eduardo, que era o patriarca da família
era uma espécie de administrador da Manhiça. Tinha um pendor para os negócios e
mas do que administrar Manhiça cuidava dos negócios da família, Arrozais e
gado. Mas as regras ditavam que o administrador fosse também juiz. O julgamento
da Maria foi breve, quinze minutos fugazes que regeriam o resto da vida dela.
Eduarda Marques auscultou a opinião dos soldados, deliberou consigo mesmo e
proferiu a sentença. Sob o olhar vidrado dos trabalhadores do campo, Maria
chegou a arrozais escoltada por dois soldados e foi entregue ao seu algoz. Devia
ter menos de trinta anos.
A moça trajava ainda as vestes em frangalhos desde a noite
anterior. O sol tropical incidia forte. Maria mergulhou o pé na lama e as mãos
no trabalho. Inclinou-se. As vestes pareciam não conter o seu corpo. Tinha a parte
do seio direito a mostra e o vestido retalhado expondo suas pernas pinceladas a
melanina. Se o capataz não se cansa, ninguém descança. Todos conheciam a regras.
Ele fazia as próprias leis, melhor, o capataz era a lei, os arrozais eram uma
colónia monárquica no meio da grande colónia que era Moçambique.
Maria chegou a casa com o crepúsculo. Era uma casa de
mulheres. Ela, a mãe, a avo. Após a trajédia do primeiro casamento, a mãe se
havia decidido por uma via de solteira. Diziam por ser casa de mulheres fáceis.
Aonde já se viu uma casa sem homem.
A verdade e que a mãe
de Maria bem que tentara. Era quase uma venda da qual o pai passou o resto da
vida se desculpando. Fora dada em casamento a Jesefa, um brutalmente que gastou
a vida entre copos de Xindere. Os estábulos ficaram vazios da noite para o dia,
não havia mais leite negado para trabalhar a terra, ele bebia sem parar e
descarregava frustração na família. Chutes e palavrões que ficaram tatuados no
corpo e na alma, como se não lhe bastasse a truculência, Josefa procurou uma
segunda esposa, quando o avo da Maria reclamou a respeito dos maus tratos a
filha o genro jogou lhe na cara a lista dos favores que este lhe devia e não
eram poucos. Foi dai que o velho trabalhou feito doido nas plantações dos
Marques para reembolsar até ao último centavo que devia ao genro.
Josefa afundou que ele mesmo abriu, o xindere subiu lhe a
cabeça e ameaçava deixar lhe louco. Numa amanha foi encontrado morto debaixo de
uma frondosa mafureira diante da sua cabana principal, nem chegou a velhice,
ninguém lhe contou os cabelos brancos, sinal de benção e sageza.
Maria tornou se filha
da mãe, da avo e do avo, trabalhou até cair inanimado numa tarde, passavam já
cinco anos era 1958.
Cruzava o caminho de um algoz cujo pai assistira sereno a
morte do avo, os quase escravos geravam quase escravos, ferrozes capatazes
brancos ensinavam aos filhos a arte de torturar aos negros, e os Marques
geravam puros Marques. Até andavam rumores incestos, para manter os Marqueses
dos Marques puros de sangue.
- Minha filha, o que foi que fizeram contigo.
- A historia repete se, mãe.
- Não, não contigo. Roubaram me o pai e não vou deixar que
agora me roube a te.
- O que vai a fazer, mãe?
- Eu vou lá e falo com o administrador. Os Marques têm de
escutar me, eu fico no teu lugar.
- Não, mãe. A senhora não vai. Olhe para as tuas mãos. A
senhora foi feita para fazer cestos e vassouras e peneiras e chapéus. A senhora
nem sequer fala português. – Maria soluçava.
- Eu tenho orgulho de te minha filha. Homem nenhum estragara
a nossa vida. Nenhum. – Mãe e filha trocaram confidências a luz apagada do
luar.
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